Não vou mais lavar os pratos por
Cristiane Sobral. Athalaia: Brasília, 2010.
Que título
desafiador – penso eu, com o livro de Cristiane Sobral em mãos. – O que será:
mais um manifesto feminista, que veio abalar os pilares do machismo global, ou
tão somente o desabafo de uma dona de casa exasperada com a rotina do lar? Abro
o livro, meio cético, e tropeço nas primeiras palavras lidas: “Não vou mais
lavar os pratos / Nem vou limpar a poeira dos móveis. / Sinto muito. / Comecei
a ler...” A curiosidade me invade, imperiosa, e, à medida que vou folheando as
páginas, desdobra-se ante meus olhos um monólogo sóbrio, sincero e comovente da
mulher moderna, uma daquelas mulheres que têm objetivos a alcançar e, mais que
isso, sonhos a realizar. “Sonho a gente não aborta”, como diz a própria
Cristiane. Sonho de amar e ser amada, de ter filhos, de construir uma casa
sólida e aconchegante, de lograr êxito na esfera profissional; enfim, sonho de
levar uma vida que não se limite a “carregar, de forma esquizofrênica, sua
pasta executiva”, e seja, portanto, feliz em todas as suas dimensões. E o único
modo de tornar esse sonho possível consiste em lutar por ele, agarrá-lo com
unhas e dentes, revelar-se, mesmo em detrimento de sua natureza feminina, uma
verdadeira guerreira Nzinga do poema homônimo, “rainha digna de exaltação”. Assim
sendo, a proposta literária de Cristiane parece trivial: que mulher não queria,
nos dias de hoje, conquistar seu espaço inalienável neste mundo criado e
governado por homens sem, todavia, depender de nenhum deles? Parece, mas não é!
A poetisa tem suas armas para combater os presumíveis clichês do conteúdo, e
usa-as com muita habilidade.
Antes de tudo, Cristiane Sobral é irônica. Ela não
se contenta com meras reproduções da realidade, mas interpreta diversas facetas
desta sob a mesma ótica desprovida de qualquer pieguice. A solidão intrínseca
dos habitantes de uma metrópole – seja o exuberante Rio de Janeiro, em que a
autora nasceu, ou a geométrica Brasília, onde mora atualmente – (Eva), a
miséria coletiva que passa de geração em geração, dando início às explosões da
violência urbana (Carma), os múltiplos e inextirpáveis preconceitos da
sociedade consumista (Algodão Black Power) – nada escapa desse olhar
penetrante e amargurado de quem conhece a vida tal como ela é. Até um beijo de
língua a misturar os efêmeros sabores luso e francês num metafórico Porto 6
deixa o campo das convenções eróticas para integrar o quadro ludicamente
ambíguo de nosso cotidiano. E aí me recordo da máxima de Heinrich Heine: não
sei onde termina a ironia e começa o céu! Cristiane faz alusões, distribui
piscadelas, provoca o leitor, brinca com ele e sempre o deixa numa dúvida
cruel: é essa a nossa civilização, é desse jeito nós todos vivemos?
A poesia de Cristiane Sobral tem outro aspecto de
igual importância: a negritude. Essa vertente artística, que remonta às obras
do mítico senegalês Léopold Senghor e do grande haitiano René Depestre, muitas
vezes fica à margem da cultura oficial brasileira. A poetisa define-a como ”um
quarto escuro (...) onde ninguém quer entrar” (Cuidado), e, ao juntar-se
ao imenso coro dos partidários da negritude, a voz dela se destaca tanto pela
singularidade da entonação lírica como pelo trágico realismo de suas canções. A
afrodescendência não se associa, para ela, à cor da pele, mas sim – e
principalmente! – à identidade histórica e cultural. Senzala, pixaim, banzo,
capitão do mato e outros espectros, que Cristiane evoca nos seus poemas mais
incisivos, não são reminiscências do passado remoto e esquecido, mas pormenores
chocantes da atualidade atávica. “Ainda não somos livres!” – exclama ela com
indignação (Ainda?) e conclui, melancólica: “... depois de tanto tempo!”
Aliás, seria injusto reduzir o mundo poético de
Cristiane Sobral ao feminismo e à africanidade. Há nele motivos sentimentais e
satíricos, há lágrimas e sorrisos, há males descritos e remédios prescritos. Ao
esboçar o retrato espiritual da mulher brasileira e tocar na melindrosa questão
racial, a poetisa está prestes a ir muito além desses próximos horizontes.
Aonde? É o tempo que nos dirá isso.
Finalizando, aproveito a ocasião para
desejar-vos, meus caros leitores, Feliz Natal e Próspero Ano Novo. Muita paz e
felicidade para todos vós, e que as boas magias do amor humano vos acompanhem
por toda parte, nesse ano de 2011. Como diz a sagacidade francesa: Au gui
l’An neuf!
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