VIDA DE SANTO
por Marcelo Sguassábia
Engana-se quem pensa que vida de santo é
um infinito dolce far niente. Nem ao mais preguiçoso deles é dada a graça de
ficar chupando chicabon eternidade afora. E aquele estereótipo de se recostar
em nuvens, entre cânticos e cítaras, é mais coisa de anjo que de santo – e anjo
de quadro barroco, idealizado e fora de contexto histórico.
Santo passa maus bocados, verdade seja
dita. E nem por isso os devotos lhes tratam com o devido respeito, o respeito
que o santo, justamente por ser santo, exige.
Por exemplo, esse estranho hábito
terráqueo de entornar no mínimo 10% da cachaça no chão da venda, dizendo que é
pro santo. Posso dizer com certeza que todos eles abrem mão da homenagem e
passam muito bem sem ela. Se gostasse mesmo de água que passarinho não bebe,
santo não seria santo. Muito pelo contrário.
Depois, tem outra: manda a Justiça Divina
que, toda vez que se oferece algo pro santo, e não se especifica pra qual santo
é o presente, a oferenda seja repartida por todos indistintamente. Vai daí que
cada gole oferecido é dividido, em partes iguais, para a santosfera inteira.
Sabendo-se que os santos são atualmente milhares, a cada um cabe geralmente uma
gotinha de nada – e não é isso que vai desviar a santaiada do bom caminho. Até
aí, nada de mais. Mas acontece que se a gente levar em conta que cada pinguço
manda pra goela pelo menos uns três copos da marvada, e que só no Brasil temos
milhões de alcoólatras, o estrago divino é grande, provocando em vários deles
internações frequentes – quando não diárias. E as mais prejudicadas são as
santas, que com um tiquinho de martini já estão trançando as pernas.
Outro problema sério é as imagens dos
santos – tanto as pintadas quanto as esculpidas. Tem santo lá em cima que
excomunga sem dó alguns dos displicentes artistas terrenos, pela falta de
semelhança deles com as imagens que os representam. Esse tipo de episódio
produz verdadeiras catástrofes estéticas. Outro dia mesmo toda a corte celeste
saiu em passeata, com cartazes, faixas e gritos de guerra, protestando contra
um lote de 250 estátuas de Santa Edwiges que saiu de fábrica com cara de Rita
Cadilac. Um repulsivo sacrilégio, que merece punição exemplar. Para evitar
novos contratempos, São Tomé propôs em assembleia a instituição do selo “Ver
para Crer”, que certifica a imagem beatificamente reconhecida, ou seja, aquela
que tem a benção do respectivo santo e que guarda nítida semelhança com a sua
figura dos tempos de carne e osso.
Além desse tipo de desrespeito, há também
injustiças que agridem e irritam a turma de auréola. A maldosa e irônica
expressão “Na descida todo santo ajuda” vem merecendo, de uns tempos para cá,
um revide da parte dos ofendidos. Julgam eles que a frase denota uma certa
acomodação, dando a entender que os santos têm braço curto e que não se
empenham nas tarefas mais difíceis, onde só um milagre pode resolver a parada.
“Não vamos ajudar mais na descida, ainda que o carro do sujeito esteja sem
freio. Pois que se espafitem, aprendam a lição e vão para o inferno” desabafa
um conhecido santo, que não quis se identificar.
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