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quarta-feira, 17 de outubro de 2012

outubro de 2012 - Caderno I


Jogo feito
por Jorge Cortás Sader Filho

Chovia fino naquela madrugada fria de meados de julho.

Interessante. A gente nunca sabe o que pode acontecer numa hora desta. O homem já com alguma idade, uns trinta e pouco, talvez, ajeitava sua japona grossa, da marinha mesmo, comprada numa loja de uniformes perto do Primeiro-Distrito Naval. Não passava frio nem no gelo, se estivesse por cima de camisa de malha com mangas compridas, como o mal-encarado estava usando. Moreno, boa altura, sapatos mocassim pretos, calça de veludo cotelê, preta também.
O conhaque espanhol estava em cima da mesa, com um copo próprio pela metade, ele já havia tomado um pouco. Acariciava uma Colt, calibre quarenta e cinco, sua arma de predileção. Estas pistolas atuais, que dão mais de quinze tiros, não são eficazes como a velha Government Model. Pesadona, boa de empunhar, sem apresentar nenhum defeito se a munição for nova ou dentro do prazo de validade. Especialmente naquela noite a arma não poderia falhar.
Goteiras pingavam a água da chuva, no velho galpão onde fora residência de um caseiro do sítio, e guardava velhas tralhas de jardinagem. Alheio a tudo isto, o homem magro continuava a beber seu conhaque com café, enquanto fumava e mexia na pistola, engatilhando, levando o cão até a frente, tirando o carregador e a bala da câmara. 
Como uma brincadeira, repetia os movimentos incessantemente. Viu quando os faróis da caminhoneta moderna varreram o quintal. “Chegou a hora”, falou consigo mesmo. Experimentado, colocou a garrafa de conhaque e dois tocos de cigarros fumados numa mochila que carregava. No bule de café e no copo não tinham suas digitais. Havia usado uma luva fina, as impressões eram de outra pessoa.

Meses antes, uma conhecida e belíssima artista de teatro e novelas de televisão, havia se passado de armas e bagagens para o lado do conhecido financista Affonso, no momento negociando uma casa de venda de pedras preciosas. Coisa grande, mas o antigo dono da maior joalheria do Rio tinha dinheiro, além de ser conhecedor de gemas de valor. A última delas era a artista famosa. Namorava o seu filho, um homem de trinta e dois anos, também metido com negócios, com a vantagem de possuir sólida formação matemática, ciência em que havia se bacharelado. Apresentara a namorada ao pai e jantaram juntos, num conhecido e elegante lugar da moda, em Ipanema. Foi o bastante para o velho ter virado a cabeça. Conhecia os casos do filho, sempre envolvido com beldades por causa de dois atributos fortes e muito favoráveis: era bonito e rico, além de jovem.

Dois meses depois, a guria já estava casada, casadíssima com o velho Affonso, que não se cansava de admirar a beleza da esposa e consumir muitos comprimidos contra a famosa disfunção erétil. Dava sempre certo.

Célio, o filho, ficou puto da vida, mas não tinha como alterar as coisas. A sacana da guria tinha trapaceado, e com o pai! 

Primeiro ele pensou em encher a gaúcha de porrada. Mas quem já foi treinado para matar sempre prefere esta opção. Havia cursado a escola de formação de oficiais da reserva do exército, e gostou muito do núcleo das forças especiais, onde saiu habilitado com louvor.

Os faróis continuavam a varrer a mata do sítio, e já não havia mais chuva, apenas a relva molhada, na qual a jovem caiu para não mais levantar, com o vestido molhado de sangue.

Jorge Cortás Sader Filho
Niterói/BR

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terça-feira, 16 de outubro de 2012

eisFluências Outubro 2012 - Caderno II


VIDA DE SANTO
por Marcelo Sguassábia

Engana-se quem pensa que vida de santo é um infinito dolce far niente. Nem ao mais preguiçoso deles é dada a graça de ficar chupando chicabon eternidade afora. E aquele estereótipo de se recostar em nuvens, entre cânticos e cítaras, é mais coisa de anjo que de santo – e anjo de quadro barroco, idealizado e fora de contexto histórico.
Santo passa maus bocados, verdade seja dita. E nem por isso os devotos lhes tratam com o devido respeito, o respeito que o santo, justamente por ser santo, exige.
Por exemplo, esse estranho hábito terráqueo de entornar no mínimo 10% da cachaça no chão da venda, dizendo que é pro santo. Posso dizer com certeza que todos eles abrem mão da homenagem e passam muito bem sem ela. Se gostasse mesmo de água que passarinho não bebe, santo não seria santo. Muito pelo contrário.
Depois, tem outra: manda a Justiça Divina que, toda vez que se oferece algo pro santo, e não se especifica pra qual santo é o presente, a oferenda seja repartida por todos indistintamente. Vai daí que cada gole oferecido é dividido, em partes iguais, para a santosfera inteira. Sabendo-se que os santos são atualmente milhares, a cada um cabe geralmente uma gotinha de nada – e não é isso que vai desviar a santaiada do bom caminho. Até aí, nada de mais. Mas acontece que se a gente levar em conta que cada pinguço manda pra goela pelo menos uns três copos da marvada, e que só no Brasil temos milhões de alcoólatras, o estrago divino é grande, provocando em vários deles internações frequentes – quando não diárias. E as mais prejudicadas são as santas, que com um tiquinho de martini já estão trançando as pernas.
Outro problema sério é as imagens dos santos – tanto as pintadas quanto as esculpidas. Tem santo lá em cima que excomunga sem dó alguns dos displicentes artistas terrenos, pela falta de semelhança deles com as imagens que os representam. Esse tipo de episódio produz verdadeiras catástrofes estéticas. Outro dia mesmo toda a corte celeste saiu em passeata, com cartazes, faixas e gritos de guerra, protestando contra um lote de 250 estátuas de Santa Edwiges que saiu de fábrica com cara de Rita Cadilac. Um repulsivo sacrilégio, que merece punição exemplar. Para evitar novos contratempos, São Tomé propôs em assembleia a instituição do selo “Ver para Crer”, que certifica a imagem beatificamente reconhecida, ou seja, aquela que tem a benção do respectivo santo e que guarda nítida semelhança com a sua figura dos tempos de carne e osso.
Além desse tipo de desrespeito, há também injustiças que agridem e irritam a turma de auréola. A maldosa e irônica expressão “Na descida todo santo ajuda” vem merecendo, de uns tempos para cá, um revide da parte dos ofendidos. Julgam eles que a frase denota uma certa acomodação, dando a entender que os santos têm braço curto e que não se empenham nas tarefas mais difíceis, onde só um milagre pode resolver a parada. “Não vamos ajudar mais na descida, ainda que o carro do sujeito esteja sem freio. Pois que se espafitem, aprendam a lição e vão para o inferno” desabafa um conhecido santo, que não quis se identificar.


Marcelo Pirajá Sguassábia 

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eisFluências Outubro de 2012 - Suplemento de Poesia


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